Martina Ahlert | Antropóloga |

Nas diversas formas possíveis de conceber o mundo (ou os mundos), existem pessoas que estão constantemente acompanhadas. Em suas andanças, lutas, celebrações e experiências cotidianas, elas mobilizam relações com outros seres, humanos e não humanos, com os quais estabelecem parcerias, cuidados e obrigações. São, elas mesmas, igualmente mobilizadas por esses encontros e afetos que fazem repensar questões de identidade e materialidade, as formas de perceber e conceber a existência. Podemos falar nesses termos quando pensamos as relações entre pessoas e encantados no contexto das religiões de matriz africana encontradas no Maranhão.

Conhecidas como encantaria maranhense, a pajelança, o tambor de Mina e o terecô mobilizam, historicamente, encontros e engajamentos entre seres diversos e pessoas. Sua presença local remonta ao período da escravidão; é importante lembrar que o Maranhão foi, às vésperas da independência, a “província brasileira com maior percentual de escravizados (78 mil, ou 55% da população)”.1 Essas religiões possuem um amplo panteão de entidades chamadas genericamente de encantados, que são percebidas como espíritos ou, ainda, como pessoas que não passaram pela experiência da morte, mas desapareceram, encantando-se.2

A encantaria – ou encantoria, como é costumeiramente chamada – é uma espécie de outro mundo, ou outra dimensão da experiência, onde vivem os encantados. De formas variadas, essa dimensão se conecta ou se cruza com a experiência humana: em determinados espaços naturais (como árvores, cachoeiras e igarapés), locais religiosos constituídos para a realização de rituais (como as tendas, terreiros, salões e quartos de santo), ou, ainda, a partir dos corpos que recebem e carregam encantados em situações de incorporação.

Além da incorporação, os encantados podem ser percebidos em sensações corpóreas ou vistos como espíritos ou, ainda, em sonhos. Suas manifestações costumam incidir sobre corpo e mente, indicando a necessidade de criar relações com eles por intermédio de obrigações, promessas e cuidados. Carregar encantado, ter mediunidade ou ter encantoria são algumas formas de aludir à presença dos encantados na vida de uma pessoa, algo que é considerado uma grande responsabilidade, uma brincadeira séria, que exige compromisso e dedicação.

Ao marcar a vida das pessoas com sua presença, os encantados as transformam: acontecimentos são ressignificados, novas atividades passam a compor o cotidiano, planos de vida são redimensionados. Mais do que habitar um contexto distante e intocável ou constituir uma espécie de mundo ou narrativa exótica, os encantados se enredam com pessoas em experiências rituais, mas também em situações ordinárias, cotidianas, domésticas. Eles se entrelaçam com as pessoas de formas diversas, constituindo família, compadrio, companhia. Assim, um encantado recebido por uma avó pode ser deixado como herança para uma neta ou neto; outro pode ser padrinho de batismo de uma das crianças da casa; outro, ainda, pode ser considerado marido ou esposa. Nesses termos, a própria ideia de religião se espraia, não podendo ser contida ou circunscrita a espaços ou momentos específicos da vida.

Os encantados também questionam enquadramentos relativos à corporalidade. Corpos masculinos podem ser ocupados por encantadas femininas e, da mesma forma, corpos femininos podem ser habitados por encantados masculinos. Pessoas idosas podem receber encantados jovens ou mesmo crianças, enquanto pessoas jovens podem carregar encantados velhos. Problemas de saúde e dificuldades de mobilidade desaparecem diante de corpos preenchidos com vitalidade e força, que dançam nas longas noites de ritual. Homens e mulheres carregando encantados não sentem fome, sede ou cansaço quando são embalados pelos sons de tambores e cabaças nos rituais das religiões de matriz africana do Maranhão.

Os encantados podem redimensionar, ainda, o saber dos brincantes que os recebem, como quando conhecem curas e tratamentos terapêuticos e os utilizam no enfrentamento de aflições físicas, psicológicas e espirituais. Seus saberes e sua companhia estão presentes também em momentos de passagem: nas situações de morte eles sentem, choram e se despedem; nos nascimentos, eles benzem, assistem e, não raro, cumprem a função de parteiros e parteiras, incorporados em seus cavalos. Em algumas histórias de vida, todas essas dimensões se articulam cuidadosamente: um pai de santo jovem, chamado Pedro, que vive no interior do Maranhão, herdou a encantada de seu avô quando este faleceu. De fato, Pedro e a entidade se conheciam desde o nascimento, quando ela, incorporada no avô, fez o seu parto.
Historicamente, as religiões de matriz africana do Maranhão sofreram perseguições e sanções dos órgãos oficiais de polícia; não raro, ainda sofrem com diferentes formas de intolerância religiosa, articuladas ao preconceito racial. A intolerância se traveste, em diversos casos, de leituras que consideram essas manifestações como pertencendo ao passado, ou como signos de falta, pobreza ou atraso. Em outros momentos, ela incide sobre corpos e casas religiosas por meio da violência física; funciona como discriminação no mercado de trabalho; e justifica afrontas verbais e interpretações equivocadas em relação às práticas religiosas.

Formas de resistência e enfrentamento foram e continuando sendo pensadas para manter a relação com os encantados, reafirmar a importância de sua presença e dar sentido à luta contra a violência. Antigamente, os encantados protegiam rituais de tambor que eram realizados dentro das matas, fazendo com que aqueles que os perseguiam perdessem a direção e não encontrassem seu destino; ou, ainda, tomando seus corpos quando ameaçavam os toques. Quando ouvimos as narrativas de pessoas mais velhas sobre essas perseguições, por um lado elas enfatizam as estratégias utilizadas para a realização dos rituais, como as formas de deslocamento e os locais escolhidos para não chamar atenção; por outro, destacam a ousadia de alguns encantados, que cantavam pontos (as músicas religiosas) para enfrentar delegados e tenentes, não demonstrando medo diante de sua presença.

Atualmente, os cuidados e a força dos encantados auxiliam no enfrentamento de dificuldades espirituais e materiais, nas lutas pela manutenção da terra e dos territórios tradicionais e também contra as desigualdades que marcam o encontro entre projetos de desenvolvimento e modos de vida tradicionais. Eles são, portanto, companhia em bloqueios de estradas e trilhos de trem, fornecem ânimo e força aos corpos cansados em protestos e lutas, dão coragem e tornam as pessoas “grandes”, nas palavras usadas por dona Dalva, mineira (como é chamado quem participa do tambor de Mina) do interior do Maranhão. Encantados participam, com mulheres e homens, de enfrentamentos políticos diante da ameaça aos territórios, como acontece em diversas comunidades quilombolas do estado, que têm seu lugar ameaçado pelos supostos proprietários das terras, por obras e empreendimentos.

Ancestrais – e, ao mesmo tempo, contemporâneos –, os encantados nos falam das formas de existir e resistir em um mundo onde mulheres e homens negros sofrem diversos processos de silenciamento e violência. Falam, ainda, das questões relacionadas à ancestralidade e à ocupação das terras no Maranhão, estado no qual a militância negra feminina tem tido papel importante, de destaque. Os corpos das mulheres – que recebem encantados e recebem filhos e filhas – são, por excelência, locus de cuidado e afeto, mas também de enfrentamento político. Esses corpos e suas formas de ação não são, entretanto, apenas respostas à opressão, porque não estão capturados nas lógicas da violência. Mais do que isso, tal qual os encantados que os habitam, eles são potência criativa.

Martina Ahlert é antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Maranhão. Desenvolveu seu interesse por antropologia da política e pelos assuntos da encantaria durante o doutorado em Antropologia Social na Universidade de Brasília, e o pós-doutorado no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

NOTAS
1 Matthias Röhrig Assunção, “A memória do tempo de cativeiro no Maranhão”. In Tempo, vol.15, n.29, 2010, pp.67-110.
2 Mundicarmo Ferretti, Desceu na guma: o caboclo do Tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: EDUFMA, 2000.