Marco Antonio Teobaldo | Curador |

Caminhar pelas ruas da Gamboa pode ser também um exercício de reflexão sobre a história da cultura brasileira que se encontra sob ruas, calçamentos e edificações. Resquícios de um passado não muito remoto vêm sendo descobertos ultimamente, em meio às obras de requalificação urbanística da Região Portuária para os Jogos Olímpicos, com o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo. E também antes destas transformações, a partir de 1996, com o achado fortuito do Sítio Arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, pelo casal Merced e Petrúcio Guimarães.

Mas nem os viajantes daquela época, como o francês Jean-Baptiste Debret e o alemão Johann Moritz Rugendas, deixaram registros sobre o sepultamento dos africanos escravizados recém-chegados ao Rio de Janeiro. A história da escravidão no Brasil sofreu um processo de apagamento sistemático, com destruição de documentos, remoção de comunidades e obras de infraestrutura nos principais pontos de concentração da cultura afrobrasileira.

Mesmo assim, foi a partir de uma reprodução de uma obra de Rugendas, que retrata uma mulher escravizada e seu filho de colo, que as artistas visuais Isabel Löfgren e Patricia Gouvêa desencadearam uma pesquisa sobre as amas de leite, também chamadas de mães pretas. Em seu o ofício forçado de alimentarem as crianças brancas, as mães pretas eram obrigadas a deixar seus filhos sem o único alimento disponível e, em alguns casos, abandonados à própria sorte. Neste sentido, a vasta bibliografia encontrada pelas artistas ao longo de dezoito meses, juntamente com um acervo de imagens do século XIX, foram o ponto de partida para que fosse construído um discurso no âmbito da arte contemporânea sobre maternidade, racismo, sexismo e exclusão social sofrida pela mulher negra no Brasil até os dias de hoje.

Mas como duas mulheres brancas poderiam construir um tratado estético sobre mães negras nesta exposição? Era esta a pergunta que as artistas faziam a si mesmas durante o processo de pesquisa e descobertas. Quanto mais informações surgiam diante de seus olhos, mais indignação servia-lhes de combustível para seguir com um projeto que ainda não tinha sequer a certeza de se concretizar. O formato a ser apresentado era incerto, mas o espaço dessas mulheres para ocupar o lugar de destaque era seguro e se fortaleceu ainda mais com o tempo decorrido dos estudos e entrevistas. A resposta para a pergunta inicial de Isabel e Patricia surgiu então, de forma muito clara: a mulher negra precisava ter voz e ser a protagonista deste trabalho.

Em MÃE PRETA, o trabalho central se impõe com a instalação em viideo com duas imagens sincronizadas nos quais as entrevistadas pela dupla revelam sua dor, seus sonhos e suas memórias, além da dura realidade sobre o que é ser uma mãe negra no Brasil. Como se uma mulher estivesse interagindo com a outra, ligando suas vozes por uma trama de solidariedade e desabafo. Uma catarse que provoca o seu observador a re etir sobre um panorama que vem se arrastando insistentemente pela sociedade brasileira de forma velada e cruel.

O trabalho de observação e descobertas das artistas é revelado em alguns momentos da mostra, e fica mais evidente na série de assemblages-fotográficas, na qual utilizam recursos como lentes de aumento e objetos que remetem às matrizes africanas. O objetivo é reiterar ou minimizar a presença de determinados personagens e detalhes, que muitas vezes podem passar desapercebidos num primeiro olhar, mas que neste caso são amplificados. Livros com imagens de obras de artistas que documentaram os costumes e tipos africanos, europeus e brasileiros na época da escravidão serviram de base para este exercício lúdico-poético de empoderamento da mulher negra em imagens históricas. A invisibilidade da mulher negra revela-se também em um retrato de mulher escravizada carregando seu filho à moda africana, feito por Marc Ferrez em 1865. Aqui, no entanto, as artistas revelam apenas uma impressão do negativo desta imagem, visto nem mesmo pelo público conhecedor do vasto acervo de imagens históricas acerca da escravidão urbana no Rio de Janeiro.

Parte do vasto volume de textos e imagens que serviram de suporte para a realização deste trabalho é disponibilizado pelas artistas em uma página na internet e integra o espaço expositivo à biblioteca do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (ipn). No local, os livros foram reorganizados e uma seção específica com o nome da exposição foi criada. A biblioteca também recebe uma série de retratos impressos sobre madeira em homenagem às mulheres que atuaram de forma significativa para a construção da cultura nacional. Um mapa-múndi com a rota da escravidão ganha destaque neste ambiente, para que seja lembrada a origem dos milhões de africanos que foram removidos de sua terra natal.

MÃE PRETA se consolida como um grito de denúncia tardia, da mesma forma que ocorre no local onde se apresenta a exposição. A Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea está situada sobre um campo santo, onde jazem dezenas de milhares de corpos de crianças, homens e mulheres, em sua grande maioria jovens, que não resistiram aos maus-tratos impingidos pelo tráfico negreiro. Não menos desumano como o atual extermínio de milhares de jovens negros nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Que este trabalho realizado por Isabel Löfgren e Patricia Gouvêa possa reverberar de alguma forma e servir para a revisão de valores, de forma que a mulher negra tenha condições de ocupar o seu merecido espaço.